A vida humana, sendo um dom e um valor inestimável e inviolável, “é
sagrada, porque desde a sua origem supõe a ação criadora de Deus e
mantém-se para sempre numa relação especial com o Criador, seu único
fim” (Cf EV, nº 53 e 61). Ainda que seja a mais pequena célula do nosso
património genético, faz parte de um ser “único e irrepetível”, que é
preciso respeitar, promover, valorizar e dignificar desde o momento da
conceção até à morte natural.
Entendemos, pois, que não é aceitável referendar ou legislar sobre a
disponibilidade da vida de alguém, precisamente porque esse alguém é um
sujeito integral, com uma dimensão ética, uma individualidade e um valor
inquestionáveis. Matar alguém é sempre um crime. Já o Concílio Vaticano
II afirmava: “Deus, senhor da vida, confiou aos homens, para que estes
desempenhassem, dum modo digno dos mesmos homens, o nobre encargo de
conservar a vida. Esta deve, pois, ser salvaguardada, com extrema
solicitude, desde o momento da concepção; o aborto e o infanticídio são
crimes abomináveis” (GS 51). No Evangelho da Vida, São João Paulo
II afirmava: ”Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente
sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de resolver
casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como
também de sustentar e prolongar a vida, até em situações de debilidade
extrema, de reanimar artificialmente pessoas, cujas funções biológicas
elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para tornar
disponíveis órgãos para transplante” (EVANGELIUM VITAE, nº 64). Num tal
contexto, parece tornar-se mais forte a tentação do recurso à eutanásia,
isto é, da apropriação da própria morte, “provocando-a antes do tempo
e, deste modo, pondo fim “docemente” à vida própria ou alheia. Na
realidade, aquilo que poderia parecer lógico e humano, apresenta-se,
quando visto em profundidade, como absurdo e desumano” (EV, nº 64).
Sendo assim, estamos diante de uma alarmante “cultura de morte”, que
como dizia a Declaração Sobre a Eutanásia, da Congregação da Doutrina da
Fé, de 5 de maio de 1980: “A eutanásia situa-se, portanto, no plano das
intenções e no plano dos métodos utilizados” (Cf EV, nº 65). No
seguimento do ensinamento da Igreja, São João Paulo II afirmou:
“Confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto
morte deliberada, moralmente inaceitável, de uma pessoa humana. Tal
doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus
escrita, e é transmitida pela tradição da Igreja e ensinada pelo
Magistério ordinário e universal. A eutanásia comporta, segundo as
circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio” (EV, nº
65). Os médicos, os enfermeiros e outros profissionais de saúde não têm
legitimidade para matar alguém, devem proceder como pessoas de bem para
curar, cuidar e aliviar o sofrimento, através de respostas científicas,
humanas e pela promoção do maior bem integral da pessoa doente. A
medicina é uma ciência para curar e dar respostas à vida de todo o ser
humano, especialmente a quem sofre, aliviando-lhe as dores com as
terapêuticas mais adequadas e com boas práticas, quer seja no momento
agudo das doenças, quer seja nas fases crónicas, particularmente, em
cuidados continuados, ou no final da vida, através de uma rede
humanizadora de “cuidados paliativos” ( Cf EG, nº 65) para todos, e
nunca pela prática da eutanásia, ou pelo suicídio assistido, nunca
agindo a favor da morte de alguém, com a falsa ideia de tal ser uma
forma de resolver o problema do sofrimento. Esta não é a prática da
medicina, ao longo de tantos séculos, nem o marco de uma civilização,
que deve ser pautada por não se poderconfundir liberdade com autonomia
ou a beneficência e a justiça com outros valores alheios, e que deve
respeitar o princípio da não-maleficência. A eutanásia e o suicídio
assistido, isto é, eliminar a vida de alguém, não podem deixar de ser
entendidos como algo que pertence à categoria dos maus-tratos sobre os
outros ou sobre si próprio. O Papa Francisco, na sua Mensagem para o Dia
Mundial do Doente deste ano 11 de fevereiro de 2020, dirigindo-se aos
profissionais de saúde, afirma: “que a vossa ação tenha em vista
constantemente a dignidade e a vida da pessoa, sem qualquer cedência a
atos como a eutanásia, o suicídio assistido ou a supressão da vida,
mesmo se o estado da doença for irreversível”.
Escutem-se os mestres e defensores da Bioética, que é um método
destinado a garantir as atuações responsáveis que preservam os valores
intrínsecos da Vida Humana, e atendam-se todos os promotores da
dignidade da vida humana e dos direitos que defendem essa mesma vida. E
respeite-se a justiça e a autonomia, agindo sempre pelo maior bem do
doente. Não façamos do Biodireito, uma libertinagem que afogue a
prudência e nos leve a não reconhecermos diante do outro, o valor e o
respeito pela sua própria alteridade.
Promover e dignificar a vida humana desde o momento da conceção até à
morte natural, eis o grande desafio que nos é feito pela racionalidade
de sermos humanos. Não a uma sociedade que deseja promover a negação do
humano e favorece o “descartável”.
A defesa da vida humana, antes de ser uma questão ligada à religião, é
uma questão da razão, do humano, do ético, e de a pessoa ser dotada de
valor próprio, com razão, inteligência, vontade e coração. O humano
decorre precisamente desta integralidade.
Neste momento, em que Portugal, como nação – perante o arrojo de
alguns dos seus políticos, que parece fazerem tábua rasa dos princípios
fundamentais – enfrenta a possibilidade de a eutanásia e o suicídio
assistidoserem legalizados, convido todas as pessoas a elegerem o bom
senso e a darem a primazia à prudência, tal como afirmou o conceituado
eticista e bioeticista, Diego Gracia, no auditório da Fundação
Champalimaud, em Lisboa, onde numa eloquente conferência, convidou os
portugueses e, de modo especial, os políticos, a fazerem uma séria e
prudente reflexão, antes de qualquer decisão legislativa nesta matéria.
Os países que querem legalizar a eutanásia e o suicídio assistido não
devem alhear-se do que se passa nos países que já a legislaram, e que
hoje estão confrontados com a progressão terrível do número de casos,
que não pára de aumentar de ano para ano, como se verifica, por exemplo,
na Holanda. Este apelo do grande eticista deveria servir-nos de lição,
para não passarmos um atestado de permissão num tema tão sensível e
fraturante da sociedade portuguesa.
Levante-se o povo, proclamem os governantes a prudência da razão,
digamos sim à vida e não a uma cultura de morte. Não à eutanásia, ao
suicídio assistido e a outras formas de antecipar a morte das pessoas,
porque estas nasceram para viverem e serem felizes.
Um grito! Um apelo! Sim à vida com dignidade, ao seu respeito
incondicional, ao cumprimento do dever humano de todos, na medida das
suas circunstâncias e possibilidades, contribuírem para o alívio do
sofrimento. Mais cuidados de saúde, ou seja, os cuidados apropriados,
multidisciplinares, em cada situação, e para todos os que precisam, seja
em que momento for das suas vidas até à morte natural.
Peço a todos os que amam a pessoa humana, de modo especial aos
cristãos e não crentes, para que nos mobilizemos no sentido de
defendermos e cantarmos um hino à vida, e para reclamarmos que na
fragilidade, na vulnerabilidade, na doença e no final da nossa vida,
cuidem sempre de nós. Que exijamos os serviços e cuidados que
caracterizam a essência da medicina, da enfermagem, do humanismo e da
ética, destinados também a promoverem a qualidade de vida, quando
estamos doentes, junto da nossa família, ou acompanhados dos nossos
amigos e de quem gostamos. Que os governantes façam boas leis, isso sim,
para que todos possamos usufruir do direito aos cuidados de saúde
necessários, nos quais se incluem os cuidados paliativos.
Dia Mundial do Doente, 11 de fevereiro de 2020
António Luciano dos Santos Costa,
Bispo de Viseu
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