«A esperança dos pobres jamais se frustrará»
1. «A esperança dos pobres jamais se frustrará» (Sal 9, 19).
Estas palavras são de incrível atualidade. Expressam uma verdade
profunda, que a fé consegue gravar sobretudo no coração dos mais pobres:
a esperança perdida devido às injustiças, aos sofrimentos e à
precariedade da vida será restabelecida.
O salmista descreve a condição do pobre e a arrogância de quem o oprime (cf. Sal 10, 1-10). Invoca o juízo de Deus, para que seja restabelecida a justiça e vencida a iniquidade (cf. Sal
10, 14-15). Parece ecoar nas suas palavras uma questão que atravessa o
decurso dos séculos até aos nossos dias: como é que Deus pode tolerar
esta desigualdade? Como pode permitir que o pobre seja humilhado, sem
intervir em sua ajuda? Por que consente que o opressor tenha vida feliz,
enquanto o seu comportamento haveria de ser condenado precisamente
devido ao sofrimento do pobre?
No período da redação do Salmo, assistia-se a um grande
desenvolvimento económico, que acabou também – como acontece
frequentemente – por gerar fortes desequilíbrios sociais. A desigualdade
gerou um grupo considerável de indigentes, cuja condição aparecia ainda
mais dramática quando comparada com a riqueza alcançada por poucos
privilegiados. Observando esta situação, o autor sagrado pinta um quadro
realista e muito verdadeiro.
Era o tempo em que pessoas arrogantes e sem qualquer sentido de Deus
espiavam os pobres para se apoderar até do pouco que tinham,
reduzindo-os à escravidão. A realidade, hoje, não é muito diferente! A
numerosos grupos de pessoas, a crise económica não lhes impediu um
enriquecimento tanto mais anómalo quando confrontado com o número imenso
de pobres que vemos pelas nossas estradas e a quem falta o necessário,
acabando por vezes humilhados e explorados. Acodem à mente estas
palavras do Apocalipse: «Porque dizes: “sou rico, enriqueci e nada me
falta”, e não te dás conta de que és um infeliz, um miserável, um pobre,
um cego, um nu?» (3, 17). Passam os séculos, mas permanece imutável a
condição de ricos e pobres, como se a experiência da história não
ensinasse nada. Assim, as palavras do salmo não dizem respeito ao
passado, mas ao nosso presente submetido ao juízo de Deus.
2. Também hoje devemos elencar muitas formas de novas escravidões a
que estão submetidos milhões de homens, mulheres, jovens e crianças.
Todos os dias encontramos famílias obrigadas a deixar a sua terra à procura de formas de subsistência noutro lugar; órfãos que perderam os pais ou foram violentamente separados deles para uma exploração brutal; jovens em busca duma realização profissional, cujo acesso lhes é impedido por míopes políticas económicas; vítimas
de tantas formas de violência, desde a prostituição à droga, e
humilhadas no seu íntimo. Além disso, como esquecer os milhões de migrantes vítimas
de tantos interesses ocultos, muitas vezes instrumentalizados para uso
político, a quem se nega a solidariedade e a igualdade? E tantas pessoas
sem abrigo e marginalizadas que vagueiam pelas estradas das nossas cidades?
Quantas vezes vemos os pobres nas lixeiras a catar o descarte e
o supérfluo, a fim de encontrar algo para se alimentar ou vestir!
Tendo-se tornado, eles próprios, parte duma lixeira humana, são tratados
como lixo, sem que isto provoque qualquer sentido de culpa em quantos
são cúmplices deste escândalo. Aos pobres, frequentemente considerados
parasitas da sociedade, não se lhes perdoa sequer a sua pobreza. A
condenação está sempre pronta. Não se podem permitir sequer o medo ou o
desânimo: simplesmente porque pobres, serão tidos por ameaçadores ou
incapazes.
Drama dentro do drama, não lhes é consentido ver o fim do túnel da miséria. Chegou-se ao ponto de teorizar e realizar uma arquitetura hostil
para desembaraçar-se da sua presença mesmo nas estradas, os últimos
espaços de acolhimento. Vagueiam duma parte para outra da cidade,
esperando obter um emprego, uma casa, um afeto… Qualquer possibilidade
que eventualmente lhes seja oferecida, torna-se um vislumbre de luz; e
mesmo nos lugares onde deveria haver pelo menos justiça, até lá muitas
vezes se abate sobre eles violentamente a prepotência. Constrangidos
durante horas infinitas sob um sol abrasador para recolher a fruta da
época, são recompensados com um ordenado irrisório; não têm segurança no
trabalho, nem condições humanas que lhes permitam sentir-se iguais aos
outros. Para eles, não existe fundo de desemprego, liquidação nem sequer
a possibilidade de adoecer.
Com vivo realismo, o salmista descreve o comportamento dos ricos que
roubam os pobres: «Arma ciladas para assaltar o pobre e (…) arrasta-o na
sua rede» (cf. Sal 10, 9). Para eles, é como se se tratasse
duma caçada, na qual os pobres são perseguidos, presos e feitos
escravos. Numa condição assim, fecha-se o coração de muitos, e leva a
melhor o desejo de desaparecer. Em suma, reconhecemos uma multidão de
pobres, muitas vezes tratados com retórica e suportados com fastídio.
Como que se tornam invisíveis, e a sua voz já não tem força nem
consistência na sociedade. Homens e mulheres cada vez mais estranhos
entre as nossas casas e marginalizados entre os nossos bairros.
3. O contexto descrito pelo salmo tinge-se de tristeza, devido à
injustiça, ao sofrimento e à amargura que fere os pobres. Apesar disso,
dá uma bela definição do pobre: é aquele que «confia no Senhor» (cf. 9,
11), pois tem a certeza de que nunca será abandonado. Na Escritura, o
pobre é o homem da confiança! E o autor sagrado indica também o motivo
desta confiança: ele «conhece o seu Senhor» (cf. 9, 11) e, na linguagem
bíblica, este «conhecer» indica uma relação pessoal de afeto e de amor.
Encontramo-nos perante uma descrição verdadeiramente impressionante,
que nunca esperaríamos. Assim faz sobressair a grandeza de Deus, quando
Se encontra diante dum pobre. A sua força criadora supera toda a
expetativa humana e concretiza-se na «recordação» que Ele tem daquela
pessoa concreta (cf. 9, 13). É precisamente esta confiança no Senhor,
esta certeza de não ser abandonado, que convida o pobre à esperança.
Sabe que Deus não o pode abandonar; por isso, vive sempre na presença
daquele Deus que Se recorda dele. A sua ajuda estende-se para além da
condição atual de sofrimento, a fim de delinear um caminho de libertação
que transforma o coração, porque o sustenta no mais profundo do seu
ser.
4. Constitui um refrão permanente da Sagrada Escritura a descrição da
ação de Deus em favor dos pobres. É Aquele que «escuta», «intervém»,
«protege», «defende», «resgata», «salva»… Em suma, um pobre não poderá
jamais encontrar Deus indiferente ou silencioso perante a sua oração. É
Aquele que faz justiça e não esquece (cf. Sal 40, 18; 70, 6); mais, constitui um refúgio para o pobre e não cessa de vir em sua ajuda (cf. Sal 10, 14).
Podem-se construir muitos muros e obstruir as entradas, iludindo-se
assim de sentir-se a seguro com as suas riquezas em prejuízo dos que
ficam do lado de fora. Mas não será assim para sempre. O «dia do
Senhor», descrito pelos profetas (cf. Am 5, 18; Is 2 – 5; Jl
1 – 3), destruirá as barreiras criadas entre países e substituirá a
arrogância de poucos com a solidariedade de muitos. A condição de
marginalização, em que vivem acabrunhadas milhões de pessoas, não poderá
durar por muito tempo. O seu clamor aumenta e abraça a terra inteira.
Como escrevia o Padre Primo Mazzolari: «O pobre é um contínuo protesto
contra as nossas injustiças; o pobre é um paiol. Se lhe ateias o fogo, o
mundo vai pelo ar».
5. Não é possível jamais iludir o premente apelo que a Sagrada
Escritura confia aos pobres. Para onde quer que se volte o olhar, a
Palavra de Deus indica que os pobres são todos aqueles que, não tendo o
necessário para viver, dependem dos outros. São o oprimido, o humilde,
aquele que está prostrado por terra. Mas, perante esta multidão
inumerável de indigentes, Jesus não teve medo de Se identificar com cada
um deles: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Esquivar-se
desta identificação equivale a ludibriar o Evangelho e diluir a
revelação. O Deus que Jesus quis revelar é este: um Pai generoso,
misericordioso, inexaurível na sua bondade e graça, que dá esperança
sobretudo a quantos estão desiludidos e privados de futuro.
Como não assinalar que as Bem-aventuranças, com que Jesus inaugurou a
pregação do Reino de Deus, começam por esta expressão: «Felizes vós, os
pobres» (Lc 6, 20)? O sentido deste anúncio paradoxal é
precisamente que o Reino de Deus pertence aos pobres, porque estão na
condição de o receber. Encontramos tantos pobres cada dia! Às vezes
parece que o transcorrer do tempo e as conquistas da civilização, em vez
de diminuir o seu número, aumentam-no. Passam os séculos, e aquela
Bem-aventurança evangélica apresenta-se cada vez mais paradoxal: os
pobres são sempre mais pobres, e hoje são-no ainda mais. Mas, colocando
no centro os pobres ao inaugurar o seu Reino, Jesus quer-nos dizer
precisamente isto: Ele inaugurou, mas confiou-nos, a nós seus
discípulos, a tarefa de lhe dar seguimento, com a responsabilidade de
dar esperança aos pobres. Sobretudo num período como o nosso, é preciso
reanimar a esperança e restabelecer a confiança. É um programa que a
comunidade cristã não pode subestimar. Disso depende a credibilidade do
nosso anúncio e do testemunho dos cristãos.
6. Ao aproximar-se dos pobres, a Igreja descobre que é um povo,
espalhado entre muitas nações, que tem a vocação de fazer com que
ninguém se sinta estrangeiro nem excluído, porque a todos envolve num
caminho comum de salvação. A condição dos pobres obriga a não se afastar
do Corpo do Senhor que sofre neles. Antes, pelo contrário, somos
chamados a tocar a sua carne para nos comprometermos em primeira pessoa
num serviço que é autêntica evangelização. A promoção, mesmo social, dos
pobres não é um compromisso extrínseco ao anúncio do Evangelho; pelo
contrário, manifesta o realismo da fé cristã e a sua validade histórica.
O amor que dá vida à fé em Jesus não permite que os seus discípulos se
fechem num individualismo asfixiador, oculto nas pregas duma intimidade
espiritual, sem qualquer influxo na vida social (cf. Francisco, Exort.
ap. Evangelii gaudium, 183).
Recentemente, choramos a perda dum grande apóstolo dos pobres, Jean
Vanier, o qual, com a sua dedicação, abriu novos caminhos à partilha
promotora das pessoas marginalizadas. Jean Vanier recebeu de Deus o dom
de dedicar toda a sua vida aos irmãos com deficiências profundas, que
muitas vezes a sociedade tende a excluir. Foi um «santo da porta ao
lado» da nossa; com o seu entusiasmo, soube reunir à sua volta muitos
jovens, homens e mulheres, que, com o seu empenho diário, deram amor e
devolveram o sorriso a tantas pessoas vulneráveis e frágeis,
oferecendo-lhes uma verdadeira «arca» de salvação contra a
marginalização e a solidão. Este seu testemunho mudou a vida de muitas
pessoas e ajudou o mundo a olhar com olhos diferentes para as pessoas
mais frágeis e vulneráveis. O clamor dos pobres foi ouvido e gerou uma
esperança inabalável, criando sinais visíveis e palpáveis dum amor
concreto, que podemos constatar até ao dia de hoje.
7. «A opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora» (ibid.,
195), é uma escolha prioritária que os discípulos de Cristo são
chamados a abraçar para não trair a credibilidade da Igreja e dar uma
esperança concreta a tantos indefesos. É neles que a caridade cristã
encontra a sua prova real, porque quem partilha os seus sofrimentos com o
amor de Cristo recebe força e dá vigor ao anúncio do Evangelho.
O compromisso dos cristãos, por ocasião deste Dia Mundial e
sobretudo na vida ordinária de cada dia, não consiste apenas em
iniciativas de assistência que, embora louváveis e necessárias, devem
tender a aumentar em cada um aquela atenção plena, que é devida a toda a
pessoa que se encontra em dificuldade. «Esta atenção amiga é o início
duma verdadeira preocupação» (ibid.,
199) pelos pobres, buscando o seu verdadeiro bem. Não é fácil ser
testemunha da esperança cristã no contexto cultural do consumismo e do
descarte, sempre propenso a aumentar um bem-estar superficial e efémero.
Requer-se uma mudança de mentalidade para redescobrir o essencial, para
encarnar e tornar incisivo o anúncio do Reino de Deus.
A esperança comunica-se também através da consolação que se
implementa acompanhando os pobres, não por alguns dias permeados de
entusiasmo, mas com um compromisso que perdura no tempo. Os pobres
adquirem verdadeira esperança, não quando nos veem gratificados por lhes
termos concedido um pouco do nosso tempo, mas quando reconhecem no
nosso sacrifício um ato de amor gratuito que não procura recompensa.
8. A tantos voluntários, a quem muitas vezes é devido o mérito de ter
sido os primeiros a intuir a importância desta atenção aos pobres, peço
para crescerem na sua dedicação. Queridos irmãos e irmãs, exorto-vos a
procurar, em cada pobre que encontrais, aquilo de que ele tem
verdadeiramente necessidade; a não vos deter na primeira necessidade
material, mas a descobrir a bondade que se esconde no seu coração,
tornando-vos atentos à sua cultura e modos de se exprimir, para poderdes
iniciar um verdadeiro diálogo fraterno. Coloquemos de parte as divisões
que provêm de visões ideológicas ou políticas, fixemos o olhar no
essencial que não precisa de muitas palavras, mas dum olhar de amor e
duma mão estendida. Nunca vos esqueçais que «a pior discriminação que
sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual» (ibid., 200).
Antes de tudo, os pobres precisam de Deus, do seu amor tornado
visível por pessoas santas que vivem ao lado deles e que, na
simplicidade da sua vida, exprimem e fazem emergir a força do amor
cristão. Deus serve-se de tantos caminhos e de infinitos instrumentos
para alcançar o coração das pessoas. É certo que os pobres também se
aproximam de nós porque estamos a distribuir-lhes o alimento, mas aquilo
de que verdadeiramente precisam ultrapassa a sopa quente ou a sanduíche
que oferecemos. Os pobres precisam das nossas mãos para se reerguer,
dos nossos corações para sentir de novo o calor do afeto, da nossa
presença para superar a solidão. Precisam simplesmente de amor...
9. Por vezes, basta pouco para restabelecer a esperança: basta parar,
sorrir, escutar. Durante um dia, deixemos de parte as estatísticas; os
pobres não são números, que invocamos para nos vangloriar de obras e
projetos. Os pobres são pessoas a quem devemos encontrar: são jovens e
idosos sozinhos que se hão de convidar a entrar em casa para partilhar a
refeição; homens, mulheres e crianças que esperam uma palavra amiga. Os
pobres salvam-nos, porque nos permitem encontrar o rosto de Jesus
Cristo.
Aos olhos do mundo, é irracional pensar que a pobreza e a indigência
possam ter uma força salvífica; e, todavia, é o que ensina o Apóstolo
quando diz: «Humanamente falando, não há entre vós muitos sábios, nem
muitos poderosos, nem muitos nobres. Mas o que há de louco no mundo é
que Deus escolheu para confundir os sábios; e o que há de fraco no mundo
é que Deus escolheu para confundir o que é forte. O que o mundo
considera vil e desprezível é que Deus escolheu; escolheu os que nada
são, para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa. Assim, ninguém se
pode vangloriar diante de Deus» (1 Cor 1, 26-29). Com os olhos
humanos, não se consegue ver esta força salvífica; mas, com os olhos da
fé, é possível vê-la em ação e experimentá-la pessoalmente. No coração
do Povo de Deus em caminho, palpita esta força salvífica que não exclui
ninguém, e a todos envolve numa verdadeira peregrinação de conversão
para reconhecer os pobres e amá-los.
10. O Senhor não abandona a quem O procura e a quantos O invocam; «não esquece o clamor dos pobres» (Sal 9,
13), porque os seus ouvidos estão atentos à sua voz. A esperança do
pobre desafia as várias condições de morte, porque sabe que é
particularmente amado por Deus e, assim, triunfa sobre o sofrimento e a
exclusão. A sua condição de pobreza não lhe tira a dignidade que recebeu
do Criador; vive na certeza de que a mesma ser-lhe-á restabelecida
plenamente pelo próprio Deus. Ele não fica indiferente à sorte dos seus
filhos mais frágeis; pelo contrário, observa as suas fadigas e
sofrimentos, para os tomar na sua mão, e dá-lhes força e coragem (cf. Sal 10,
14). A esperança do pobre torna-se forte com a certeza de que é
acolhido pelo Senhor, n’Ele encontra verdadeira justiça, fica revigorado
no coração para continuar a amar (cf. Sal 10, 17).
Aos discípulos do Senhor Jesus, a condição que se lhes impõe para
serem evangelizadores coerentes é semear sinais palpáveis de esperança. A
todas as comunidades cristãs e a quantos sentem a exigência de levar
esperança e conforto aos pobres, peço que se empenhem para que este Dia Mundial
possa reforçar em muitos a vontade de colaborar concretamente para que
ninguém se sinta privado da proximidade e da solidariedade.
Acompanhem-nos as palavras do profeta que anuncia um futuro diferente:
«Para vós, que respeitais o meu nome, brilhará o sol de justiça,
trazendo a cura nos seus raios» (Ml 3, 20).
Vaticano, na Memória litúrgica de Santo António de Lisboa, 13 de junho de 2019.
Francisco
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