O Papa Francisco publicou ontem a carta apostólica ‘Misericordia e
mísera’, na qual manifesta a sua preocupação com o clima de “tristeza”
que se vive em várias partes da sociedade contemporânea.
“Numa cultura frequentemente dominada pela tecnologia, parecem
multiplicar-se as formas de tristeza e solidão em que caem as pessoas,
incluindo muitos jovens”, adverte, no texto que assinala o final do
Jubileu da Misericórdia (dezembro 2015-novembro 2016), o Ano Santo
extraordinário encerrado solenemente este domingo no Vaticano.
Francisco alude a um futuro “refém da incerteza” e sem horizonte de
estabilidade, gerando assim sentimentos de “melancolia, tristeza e
tédio, que podem, pouco a pouco, levar ao desespero”.
“Há necessidade de testemunhas de esperança e de alegria verdadeira,
para expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil com paraísos
artificiais”, defende.
A nova carta apostólica lembra a necessidade de apoiar as famílias nos
momentos de “crise”, apresentando o matrimónio como “uma grande
vocação”.
“A beleza da família permanece inalterada, apesar de tantas sombras e propostas alternativas”, sustenta o Papa.
Nas famílias, “lugar privilegiado da misericórdia”, existem
dificuldades como “a traição e a solidão”, ou as preocupações dos pais
com o “crescimento e formação” dos filhos, que exigem a atenção da
comunidade católica.
“A experiência da misericórdia torna-nos capazes de encarar todas as
dificuldades humanas com a atitude do amor de Deus, que não se cansa de
acolher e acompanhar”, pode ler-se.
O documento fala num “vazio profundo” que pode ser preenchido pela esperança e pela alegria que nasce da fé.
“Nunca deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé no Senhor
ressuscitado. É verdade que muitas vezes somos sujeitos a dura prova,
mas não deve jamais esmorecer a certeza de que o Senhor nos ama”, refere
Francisco.
O pontífice argentino realça depois a importância de estar perto de
quem sofre e de “enxugar” as suas lágrimas nos dias da tristeza e da
aflição.
“Quanta dor pode causar uma palavra maldosa, fruto da inveja, do ciúme e
da ira! Quanto sofrimento provoca a experiência da traição, da
violência e do abandono! Quanta amargura perante a morte das pessoas
queridas! E, no entanto, Deus nunca está longe quando se vivem estes
dramas”, assinala.
Francisco elogia a capacidade de “silêncio” perante o sofrimento alheio, como um momento de força e de consolação.
Neste contexto, o Papa pede
que a Igreja viva com particular atenção o “momento da morte”, na
cultura contemporânea, como uma passagem que, “embora dolorosa e
inevitável, é cheia de sentido”.
A carta apostólica ‘Misericordia et misera’ foi assinada publicamente
este domingo, na Praça de São Pedro, após o final da Missa que encerrou o
Jubileu da Misericórdia, 29.º Ano Santo na história da Igreja Católica.
Carta apostólica Misericordia et misera do Papa Francisco
NO TERMO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
FRANCISCO
a quantos lerem esta Carta Apostólica misericórdia e paz!
a quantos lerem esta Carta Apostólica misericórdia e paz!
MISERICÓRDIA E MÍSERA (misericordia et misera) são as duas palavras que Santo Agostinho utiliza para descrever o encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8,
1-11). Não podia encontrar expressão mais bela e coerente do que esta,
para fazer compreender o mistério do amor de Deus quando vem ao encontro
do pecador: «Ficaram apenas eles dois: a mísera e a misericórdia».[1] Quanta
piedade e justiça divina nesta narração! O seu ensinamento, ao mesmo
tempo que ilumina a conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia,
indica o caminho que somos chamados a percorrer no futuro.
1. Esta página do Evangelho pode, com justa razão, ser considerada como
ícone de tudo o que celebramos no Ano Santo, um tempo rico em
misericórdia, a qual pede para continuar a ser celebrada e vivida nas
nossas comunidades. Com efeito, a misericórdia não se pode reduzir a um
parêntese na vida da Igreja, mas constitui a sua própria existência,
que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho. Tudo se
revela na misericórdia; tudo se compendia no amor misericordioso do Pai.
Encontraram-se uma mulher e Jesus: ela, adúltera e – segundo a Lei –
julgada passível de lapidação; Ele que, com a sua pregação e o dom total
de Si mesmo que O levará até à cruz, reconduziu a lei mosaica ao seu
intento originário genuíno. No centro, não temos a lei e a justiça
legal, mas o amor de Deus, que sabe ler no coração de cada pessoa
incluindo o seu desejo mais oculto e que deve ter a primazia sobre tudo.
Entretanto, nesta narração evangélica, não se encontram o pecado e o
juízo em abstrato, mas uma pecadora e o Salvador. Jesus fixou nos olhos
aquela mulher e leu no seu coração: lá encontrou o desejo de ser
compreendida, perdoada e libertada. A miséria do pecado foi revestida
pela misericórdia do amor. Da parte de Jesus, nenhum juízo que não
estivesse repassado de piedade e compaixão pela condição da pecadora. A
quem pretendia julgá-la e condená-la à morte, Jesus responde com um
longo silêncio, cujo intuito é deixar emergir a voz de Deus tanto na
consciência da mulher como nas dos seus acusadores. Estes deixam cair as
pedras das mãos e vão-se embora um a um (cf. Jo 8, 9). E,
depois daquele silêncio, Jesus diz: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te
condenou? (...) Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não
tornes a pecar» (8, 10.11). Desta forma, ajuda-a a olhar para o futuro
com esperança, pronta a recomeçar a sua vida; a partir de agora, se
quiser, poderá «proceder no amor» (Ef 5, 2). Depois que se
revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por
causa do pecado, tal condição é dominada pelo amor que consente de olhar
mais além e viver de maneira diferente.
2. Aliás Jesus ensinara-o claramente quando, em casa dum fariseu que O
convidara para almoçar, se aproximou d’Ele uma mulher conhecida por
todos como pecadora (cf. Lc 7, 36-50). Esta ungira com perfume
os pés de Jesus, banhara-os com as suas lágrimas e enxugara-os com os
seus cabelos (cf. 7, 37-38). À reação escandalizada do fariseu, Jesus
retorquiu: «São perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas
àquele a quem pouco se perdoa, pouco ama» (7, 47).
O perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis
revelar em toda a sua vida. Não há página do Evangelho que possa ser
subtraída a este imperativo do amor que chega até ao perdão. Até nos
últimos momentos da sua existência terrena, ao ser pregado na cruz,
Jesus tem palavras de perdão: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que
fazem» (Lc 23, 34).
Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus
pode ficar sem o abraço do seu perdão. É por este motivo que nenhum de
nós pode pôr condições à misericórdia; esta permanece sempre um ato de
gratuidade do Pai celeste, um amor incondicional e não merecido. Por
isso, não podemos correr o risco de nos opor à plena liberdade do amor
com que Deus entra na vida de cada pessoa.
A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e
muda a vida. É assim que se manifesta o seu mistério divino. Deus é
misericordioso (cf. Ex 34, 6), a sua misericórdia é eterna (cf. Sal 136/135), de geração em geração abraça cada pessoa que confia n’Ele e transforma-a, dando-lhe a sua própria vida.
3. Quanta alegria brotou no coração destas duas mulheres: a adúltera e a
pecadora! O perdão fê-las sentirem-se, finalmente, livres e felizes
como nunca antes. As lágrimas da vergonha e do sofrimento
transformaram-se no sorriso de quem sabe que é amado. A misericórdia
suscita alegria, porque o coração se abre à esperança duma vida
nova. A alegria do perdão é indescritível, mas transparece em nós
sempre que a experimentamos. Na sua origem, está o amor com que Deus vem
ao nosso encontro, rompendo o círculo de egoísmo que nos envolve, para
fazer também de nós instrumentos de misericórdia.
Como são significativas, também para nós, estas palavras antigas que
guiavam os primeiros cristãos: «Reveste-te de alegria, que é sempre
agradável a Deus e por Ele bem acolhida. Todo o homem alegre trabalha
bem, pensa bem e despreza a tristeza. (...) Viverão em Deus todas as
pessoas que afastam a tristeza e se revestem de toda a alegria».[2] Experimentar
a misericórdia dá alegria; não no-la deixemos roubar pelas várias
aflições e preocupações. Que ela permaneça bem enraizada no nosso
coração e sempre nos faça olhar com serenidade a vida do dia-a-dia.
Numa cultura frequentemente dominada pela tecnologia, parecem
multiplicar-se as formas de tristeza e solidão em que caem as pessoas,
incluindo muitos jovens. Com efeito, o futuro parece estar refém da
incerteza, que não permite ter estabilidade. É assim que muitas vezes
surgem sentimentos de melancolia, tristeza e tédio, que podem, pouco a
pouco, levar ao desespero. Há necessidade de testemunhas de esperança e
de alegria verdadeira, para expulsar as quimeras que prometem uma
felicidade fácil com paraísos artificiais. O vazio profundo de tanta
gente pode ser preenchido pela esperança que trazemos no coração e pela
alegria que brota dela. Há tanta necessidade de reconhecer a alegria que
se revela no coração tocado pela misericórdia! Por isso guardemos como
um tesouro estas palavras do Apóstolo: «Alegrai-vos sempre no Senhor!» (Flp 4, 4; cf. 1 Ts 5, 16).
4. Celebramos um Ano intenso, durante o qual nos foi concedida, em
abundância, a graça da misericórdia. Como um vento impetuoso e salutar, a
bondade e a misericórdia do Senhor derramaram-se sobre o mundo inteiro.
E perante este olhar amoroso de Deus, que se fixou de maneira tão
prolongada sobre cada um de nós, não se pode ficar indiferente, porque
muda a vida.
Antes de mais nada, sentimos necessidade de agradecer ao Senhor,
dizendo-Lhe: «Vós abençoastes a vossa terra (…). Perdoastes as culpas do
vosso povo» (Sal 85/84, 2.3). Foi mesmo assim: Deus esmagou as nossas culpas e lançou ao fundo do mar os nossos pecados (cf. Miq 7, 19); já não Se lembra deles, lançou-os para trás de Si (cf. Is 38, 17); como o Oriente está afastado do Ocidente, assim os nossos pecados estão longe d’Ele (cf. Sal 103/102, 12).
Neste Ano Santo, a Igreja pôde colocar-se à escuta e experimentou com
grande intensidade a presença e proximidade do Pai, que, por obra do
Espírito Santo, lhe tornou mais evidente o dom e o mandato de Jesus
Cristo relativo ao perdão. Foi realmente uma nova visita do Senhor ao
meio de nós. Sentimos o seu sopro vital efundir-se sobre a Igreja,
enquanto, mais uma vez, as suas palavras indicavam a missão: «Recebei o
Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados;
àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos» (Jo 20, 22-23).
5. Agora, concluído este Jubileu, é tempo de olhar para diante e
compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria e
entusiasmo, a experimentar a riqueza da misericórdia divina. As nossas
comunidades serão capazes de permanecer vivas e dinâmicas na obra da
nova evangelização na medida em que a «conversão pastoral», que estamos
chamados a viver,[3] for
plasmada dia após dia pela força renovadora da misericórdia. Não
limitemos a sua ação; não entristeçamos o Espírito que indica sempre
novas sendas a percorrer para levar a todos o Evangelho da salvação.
Em primeiro lugar, somos chamados a celebrar a misericórdia.
Quanta riqueza está presente na oração da Igreja, quando invoca a Deus
como Pai misericordioso! Na liturgia, não só se evoca repetidamente a
misericórdia, mas é realmente recebida e vivida. Desde o início até ao
fim da Celebração Eucarística, a misericórdia reaparece várias
vezes no diálogo entre a assembleia orante e o coração do Pai, que
rejubila quando pode derramar o seu amor misericordioso. Logo na altura
do pedido inicial de perdão com a invocação «Senhor, tende piedade de
nós», somos tranquilizados: «Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós,
perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna». É com esta
confiança que a comunidade se reúne na presença do Senhor, especialmente
no dia semanal que recorda a ressurreição. Muitas orações ditas
«coletas» procuram recordar-nos o grande dom da misericórdia. No tempo
da Quaresma, por exemplo, rezamos com estas palavras: «Deus, Pai de
misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes encontrar no
jejum, na oração e no amor fraterno os remédios do pecado, olhai benigno
para a confissão da nossa humildade, de modo que, abatidos pela
consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa misericórdia».[4]Mais
adiante, somos introduzidos na Oração Eucarística pelo Prefácio que
proclama: «Na vossa infinita misericórdia, de tal modo amastes o mundo
que nos enviastes Jesus Cristo, nosso Salvador, em tudo semelhante ao
homem, menos no pecado».[5] Aliás
a própria Oração IV é um hino à misericórdia de Deus: «Na vossa
misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles que Vos
procuram Vos encontrem».[6] «Tende misericórdia de nós, Senhor»:[7] é
a súplica premente que o sacerdote faz na Oração Eucarística para
implorar a participação na vida eterna. Depois do Pai-Nosso, o sacerdote
prolonga a oração invocando a paz e a libertação do pecado, «ajudados
pela vossa misericórdia» e, antes da saudação da paz que os
participantes trocam entre si como expressão de fraternidade e amor
mútuo à luz do perdão recebido, o celebrante reza de novo: «Não olheis
aos nossos pecados, mas à fé da vossa Igreja».[8] Através
destas palavras, pedimos com humilde confiança o dom da unidade e da
paz para a Santa Mãe Igreja. Assim a celebração da misericórdia divina
culmina no Sacrifício Eucarístico, memorial do mistério pascal de
Cristo, do qual brota a salvação para todo o ser humano, a história e o
mundo inteiro. Em suma, cada momento da Celebração Eucarística faz
referimento à misericórdia de Deus.
Mas, em toda a vida sacramental, é-nos dada com abundância a
misericórdia. Realmente é significativo que a Igreja tenha querido fazer
explicitamente apelo à misericórdia na fórmula dos dois sacramentos
chamados «de cura»: a Reconciliação e a Unção dos Enfermos.
Assim reza a fórmula da absolvição: «Deus, Pai de misericórdia, que,
pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e
infundiu o Espírito para a remissão dos pecados, te conceda, pelo
ministério da Igreja, o perdão e a paz»;[9] e
ao ungir a pessoa doente: «Por esta santa Unção e pela sua piíssima
misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito
Santo».[10] Deste modo, a referência à misericórdia na oração da Igreja, longe de ser apenas parenética, é altamente realizadora,
ou seja, enquanto a invocamos com fé, é-nos concedida; enquanto a
confessamos viva e real, efetivamente transforma-nos. Este é um conteúdo
fundamental da nossa fé, que devemos conservar em toda a sua
originalidade: ainda antes e acima da revelação do pecado, temos a
revelação do amor com que Deus criou o mundo e os seres humanos. O amor é
o primeiro ato com que Deus Se deu a conhecer e vem ao nosso encontro.
Por isso mantenhamos o coração aberto à confiança de ser amados por
Deus. O seu amor sempre nos precede, acompanha e permanece connosco, não
obstante o nosso pecado.
6. Neste contexto, assume significado particular também a escuta da Palavra de Deus.
Cada domingo, a Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã, para
que o Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério
pascal.[11] Na
Celebração Eucarística, é como se assistíssemos a um verdadeiro diálogo
entre Deus e o seu povo. Com efeito, na proclamação das Leituras
bíblicas, repassa-se a história da nossa salvação através da obra
incessante de misericórdia que é anunciada. Deus fala-nos ainda hoje
como a amigos, «convive» connosco[12] oferecendo-nos
a sua companhia e mostrando-nos a senda da vida. A sua Palavra faz-se
intérprete dos nossos pedidos e preocupações e, simultaneamente,
resposta fecunda para podermos experimentar concretamente a sua
proximidade. Quão grande importância adquire a homilia, onde «a verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem»,[13] para
fazer vibrar o coração dos crentes perante a grandeza da misericórdia!
Recomendo vivamente a preparação da homilia e o cuidado na sua
proclamação. Será tanto mais frutuosa quanto mais o sacerdote tiver
experimentado em si mesmo a bondade misericordiosa do Senhor. Comunicar a
certeza de que Deus nos ama não é um exercício de retórica, mas
condição de credibilidade do próprio sacerdócio. Por conseguinte, viver a
misericórdia é a via mestra para fazê-la tornar-se um verdadeiro
anúncio de consolação e conversão na vida pastoral. A homilia, como
também a catequese, precisam de ser sempre sustentadas por este coração
pulsante da vida cristã.
7. A Bíblia é a grande narração que relata as maravilhas da
misericórdia de Deus. Nela, cada página está imbuída do amor do Pai,
que, desde a criação, quis imprimir no universo os sinais de seu amor. O
Espírito Santo, através das palavras dos profetas e dos escritos
sapienciais, moldou a história de Israel no reconhecimento da ternura e
proximidade de Deus, não obstante a infidelidade do povo. A vida de
Jesus e a sua pregação marcam, de forma determinante, a história da
comunidade cristã, que compreendeu a sua missão com base no mandato que
Cristo lhe confiou de ser instrumento permanente da sua misericórdia e
do seu perdão (cf. Jo 20, 23). Através da Sagrada Escritura,
mantida viva pela fé da Igreja, o Senhor continua a falar à sua Esposa,
indicando-lhe as sendas a percorrer para que o Evangelho da salvação
chegue a todos. É meu vivo desejo que a Palavra de Deus seja cada vez
mais celebrada, conhecida e difundida, para que se possa, através dela,
compreender melhor o mistério de amor que dimana daquela fonte de
misericórdia. Claramente no-lo recorda o Apóstolo: «Toda a Escritura é
inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar
na justiça» (2 Tm 3, 16).
Seria conveniente que cada comunidade pudesse, num domingo do Ano
Litúrgico, renovar o compromisso em prol da difusão, conhecimento e
aprofundamento da Sagrada Escritura: um domingo dedicado inteiramente à
Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém
daquele diálogo constante de Deus com o seu povo. Não há de faltar a
criatividade para enriquecer o momento com iniciativas que estimulem os
crentes a ser instrumentos vivos de transmissão da Palavra. Entre tais
iniciativas, conta-se certamente uma difusão mais ampla da lectio divina, para que, através da leitura orante do texto sagrado, a vida espiritual encontre apoio e crescimento. A lectio divina sobre
os temas da misericórdia consentirá de verificar a grande fecundidade
que deriva do texto sagrado, lido à luz de toda a tradição espiritual da
Igreja, que leva necessariamente a gestos e obras concretas de
caridade.[14]
8. A celebração da misericórdia tem lugar, duma forma muito particular, no sacramento da Reconciliação.
Este é o momento em que sentimos o abraço do Pai, que vem ao nosso
encontro para nos restituir a graça de voltarmos a ser seus filhos. Nós
somos pecadores e carregamos connosco o peso da contradição entre o que
quereríamos fazer e aquilo que, ao invés, acabamos concretamente por
fazer (cf. Rm 7, 14-21); mas a graça sempre nos precede e
assume o rosto da misericórdia que se torna eficaz na reconciliação e no
perdão. Deus faz-nos compreender o seu amor imenso precisamente à vista
da nossa realidade de pecadores. A graça é mais forte, e supera
qualquer possível resistência, porque o amor tudo vence (cf. 1 Cor 13, 7).
No sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e
convida a experimentar de novo a sua proximidade. É um perdão que pode
ser obtido, começando antes de mais nada a viver a caridade. Assim no-lo recorda o apóstolo Pedro, quando escreve que «o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Ped 4,
8). Só Deus perdoa os pecados, mas também nos pede que estejamos
prontos a perdoar aos outros, como Ele perdoa a nós: «Perdoai-nos as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6,
12). Como é triste quando ficamos fechados em nós mesmos, incapazes de
perdoar! Prevalecem o ressentimento, a ira, a vingança, tornando a vida
infeliz e frustrando o jubiloso compromisso pela misericórdia.
9. Uma experiência de graça que a Igreja viveu, com tanta eficácia, no Ano Jubilar foi, certamente, o serviço dos Missionários da Misericórdia.
A sua ação pastoral pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer
barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas vai ao
encontro de todos como um Pai. Recebi muitos testemunhos de alegria pelo
renovado encontro com o Senhor no sacramento da Confissão. Não percamos
a oportunidade de viver a fé, inclusive como experiência da
reconciliação. «Reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20): é o
convite que ainda hoje dirige o Apóstolo a cada crente para lhe fazer
descobrir a força do amor que o torna uma «nova criação» (2 Cor 5, 17).
Quero expressar a minha gratidão a todos os Missionários da
Misericórdia pelo valioso serviço oferecido para tornar eficaz a graça
do perdão. Mas este ministério extraordinário não termina com o
encerramento da Porta Santa. De facto desejo que permaneça ainda, até
novas ordens, como sinal concreto de que a graça do Jubileu continua a
ser viva e eficaz nas várias partes do mundo. Será responsabilidade do
Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização seguir, neste
período, os Missionários da Misericórdia, como expressão direta da minha
solicitude e proximidade e encontrar as formas mais coerentes para o
exercício deste precioso ministério.
10. Aos sacerdotes, renovo o convite para se prepararem com grande
cuidado para o ministério da Confissão, que é uma verdadeira missão
sacerdotal. Agradeço-vos vivamente pelo vosso serviço e peço-vos para
serdes acolhedores com todos, testemunhas da ternura paterna não obstante a gravidade do pecado, solícitos em ajudar a refletir sobre o mal cometido, clarosao apresentar os princípios morais, disponíveis para acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando com paciência o seu passo, clarividentes no discernimento de cada um dos casos, generosos na
concessão do perdão de Deus. Como Jesus, perante a adúltera, optou por
permanecer em silêncio para a salvar da condenação à morte, assim também
o sacerdote no confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que
cada penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas
ministro da misericórdia.
11. Gostaria que todos nós meditássemos as palavras do Apóstolo,
escritas no final da sua vida, quando confessa a Timóteo ser o primeiro
dos pecadores, mas «justamente por isso alcancei misericórdia» (1 Tm 1,
16). As suas palavras têm uma força que irrompe também em nós
levando-nos a refletir sobre a nossa existência vendo em ação a
misericórdia de Deus na mudança, conversão e transformação do nosso
coração: «Dou graças Àquele que me conforta, Cristo Jesus Nosso Senhor,
por me ter considerado digno de confiança, pondo-me ao seu serviço, a
mim que antes fora blasfemo, perseguidor e violento. Mas alcancei
misericórdia» (1 Tm 1, 12-13).
Por isso lembremos, com paixão pastoral sempre renovada, as palavras do
Apóstolo: «Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio
de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação» (2 Cor 5,
18). Nós, primeiro, fomos perdoados, tendo em vista este ministério;
tornamo-nos testemunhas em primeira mão da universalidade do perdão. Não
há lei nem preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho que
regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a começar de novo.
Deter-se apenas na lei equivale a invalidar a fé e a misericórdia
divina. Há um valor preparatório na lei (cf. Gal 3, 24), cujo fim é o amor (cf. 1 Tm 1, 5). Mas o cristão é chamado a viver a novidade do Evangelho, «a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus» (Rm 8,
2). Mesmo nos casos mais complexos, onde se é tentado a fazer
prevalecer uma justiça que deriva apenas das normas, deve-se crer na
força que brota da graça divina.
Nós, confessores, temos experiência de muitas conversões que ocorrem
diante dos nossos olhos. Sintamos, portanto, a responsabilidade de
gestos e palavras que possam chegar ao fundo do coração do penitente,
para que descubra a proximidade e a ternura do Pai que perdoa. Não
invalidemos estes momentos com comportamentos que possam contradizer a
experiência da misericórdia que se procura; mas, antes, ajudemos a
iluminar o espaço da consciência pessoal com o amor infinito de Deus
(cf. 1 Jo 3, 20).
O sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar
central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a
sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5,
18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de
aceder ao amor do Pai que espera o seu regresso e, ao mesmo tempo, a
todos seja oferecida a possibilidade de experimentar a força libertadora
do perdão.
Uma ocasião propícia pode ser a celebração da iniciativa 24 horas para o Senhor nas
proximidades do IV domingo da Quaresma, que goza já de amplo consenso
nas dioceses e continua a ser um forte apelo pastoral para viver
intensamente o sacramento da Confissão.
12. Em virtude desta exigência, para que nenhum obstáculo exista entre o
pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora a
todos os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de
absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do aborto. Aquilo
que eu concedera de forma limitada ao período jubilar[15] fica
agora alargado no tempo, não obstante qualquer disposição em contrário.
Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave
pecado, porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e
devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não
possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que
pede para se reconciliar com o Pai. Portanto, cada sacerdote faça-se
guia, apoio e conforto no acompanhamento dos penitentes neste caminho de
especial reconciliação.
No Ano do Jubileu, aos fiéis que por variados motivos frequentam as
igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X,
tinha-lhes concedido receber válida e licitamente a absolvição
sacramental dos seus pecados.[16] Para
o bem pastoral destes fiéis e confiando na boa vontade dos seus
sacerdotes para que se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena
comunhão na Igreja Católica, estabeleço por minha própria decisão de
estender esta faculdade para além do período jubilar, até novas
disposições sobre o assunto, a fim de que a ninguém falte jamais o sinal
sacramental da reconciliação através do perdão da Igreja.
13. A misericórdia possui também o rosto da consolação. «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40,
1): são as palavras sinceras que o profeta faz ouvir ainda hoje, para
que possa chegar uma palavra de esperança a quantos estão no sofrimento e
na aflição. Nunca deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé
no Senhor ressuscitado. É verdade que muitas vezes somos sujeitos a dura
prova, mas não deve jamais esmorecer a certeza de que o Senhor nos ama.
A sua misericórdia expressa-se também na proximidade, no carinho e no
apoio que muitos irmãos e irmãs podem oferecer quando sobrevêm os dias
da tristeza e da aflição. Enxugar as lágrimas é uma ação concreta que
rompe o círculo de solidão onde muitas vezes se fica encerrado.
Todos precisamos de consolação, porque ninguém está imune do
sofrimento, da tribulação e da incompreensão. Quanta dor pode causar uma
palavra maldosa, fruto da inveja, do ciúme e da ira! Quanto sofrimento
provoca a experiência da traição, da violência e do abandono! Quanta
amargura perante a morte das pessoas queridas! E, todavia, Deus nunca
está longe quando se vivem estes dramas. Uma palavra que anima, um
abraço que te faz sentir compreendido, uma carícia que deixa perceber o
amor, uma oração que permite ser mais forte... são todas expressões da
proximidade de Deus através da consolação oferecida pelos irmãos.
Às vezes, poderá ser de grande ajuda também o silêncio; porque
em certas ocasiões não há palavras para responder às perguntas de quem
sofre. Mas, à falta da palavra, pode suprir a compaixão de quem está
presente, próximo, ama e estende a mão. Não é verdade que o silêncio
seja um ato de rendição; pelo contrário, é um momento de força e de
amor. O próprio silêncio pertence à nossa linguagem de consolação,
porque se transforma num gesto concreto de partilha e participação no
sofrimento do irmão.
14. Num momento particular como o nosso que, entre muitas crises,
regista também a da família, é importante fazer chegar uma palavra de
força consoladora às nossas famílias. O dom do matrimónio é uma grande
vocação, que se há de viver, com a graça de Cristo, no amor generoso,
fiel e paciente. A beleza da família permanece inalterada, apesar de
tantas sombras e propostas alternativas: «a alegria do amor que se vive
nas famílias é também o júbilo da Igreja».[17] A
senda da vida que leva um homem e uma mulher a encontrarem-se,
amarem-se e prometerem reciprocamente, diante de Deus, uma fidelidade
para sempre, é muitas vezes interrompida pelo sofrimento, a traição e a
solidão. A alegria pelo dom dos filhos não está imune das preocupações
sentidas pelos pais com o seu crescimento e formação, com um futuro
digno de ser vivido intensamente.
A graça do sacramento do Matrimónio não só fortalece a família, para
que seja o lugar privilegiado onde se vive a misericórdia, mas também
compromete a comunidade cristã e toda a atividade pastoral para pôr em
realce o grande valor propositivo da família. Por isso, este Ano Jubilar
não pode perder de vista a complexidade da realidade familiar atual. A
experiência da misericórdia torna-nos capazes de encarar todas as
dificuldades humanas com a atitude do amor de Deus, que não Se cansa de
acolher e acompanhar.[18]
Não podemos esquecer que cada um traz consigo a riqueza e o peso da sua
própria história, que nos distingue de qualquer outra pessoa. A nossa
vida, com as suas alegrias e os seus sofrimentos, é algo único e
irrepetível que se desenrola sob o olhar misericordioso de Deus. Isto
requer, sobretudo por parte do sacerdote, um discernimento espiritual
atento, profundo e clarividente, para que toda a pessoa sem exceção, em
qualquer situação que viva, possa sentir-se concretamente acolhida por
Deus, participar ativamente na vida da comunidade e estar inserida
naquele Povo de Deus que incansavelmente caminha para a plenitude do
reino de Deus, reino de justiça, de amor, de perdão e de misericórdia.
15. Reveste-se de particular importância o momento da morte. A
Igreja viveu sempre esta dramática passagem à luz da ressurreição de
Jesus Cristo, que abriu a estrada para a certeza da vida futura. Temos
aqui um grande desafio a abraçar, sobretudo na cultura contemporânea
que, muitas vezes, tende a banalizar a morte até reduzi-la a simples
ficção ou a ocultá-la. Ao contrário, a morte há de ser enfrentada e
preparada como uma passagem que, embora dolorosa e inevitável, é cheia
de sentido: o ato extremo de amor para com as pessoas que se deixam e
para com Deus a cujo encontro se vai. Em todas as religiões, o momento
da morte – como aliás o do nascimento – é acompanhado por uma presença
religiosa. Nós vivemos a experiência das exéquias como uma
oração cheia de esperança para a alma da pessoa falecida e para dar
consolação àqueles que sofrem a separação da pessoa amada.
Estou convencido de que há necessidade, na pastoral animada por uma fé
viva, de tornar palpável como os sinais litúrgicos e as nossas orações
são expressão da misericórdia do Senhor. É Ele próprio que oferece
palavras de esperança, porque nada nem ninguém poderá separar-nos jamais
do seu amor (cf. Rm 8, 35.38-39). A partilha deste momento
pelo sacerdote é um acompanhamento importante, porque lhe permite viver a
proximidade à comunidade cristã no momento de fraqueza, solidão,
incerteza e pranto.
16. Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da
misericórdia do nosso coração permanece sempre aberta de par em par.
Aprendemos que Deus Se inclina sobre nós (cf. Os 11, 4), para
que também nós possamos imitá-Lo inclinando-nos sobre os irmãos. A
saudade que muitos sentem de regressar à casa do Pai, que aguarda a sua
chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras e generosas da
ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar,
introduziu-nos no caminho da caridade, que somos chamados a
percorrer todos os dias com fidelidade e alegria. É a estrada da
misericórdia que torna possível encontrar tantos irmãos e irmãs que
estendem a mão para que alguém a possa agarrar a fim de caminharem
juntos.
Querer estar perto de Cristo exige fazer-se próximo dos irmãos, porque
nada é mais agradável ao Pai do que um sinal concreto de misericórdia.
Por sua própria natureza, a misericórdia torna-se visível e palpável
numa ação concreta e dinâmica. Uma vez que se experimentou a
misericórdia em toda a sua verdade, nunca mais se volta atrás: cresce
continuamente e transforma a vida. É, na verdade, uma nova criação que
faz um coração novo, capaz de amar plenamente, e purifica os olhos para
reconhecerem as necessidades mais ocultas. Como são verdadeiras as
palavras com que a Igreja reza na Vigília Pascal, depois da leitura da
narração da criação: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o
homem e de modo mais admirável o redimistes…»![19]
A misericórdia renova e redime, porque é o encontro
de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem.
Este inflama-se e o primeiro cura-o: o coração de pedra fica
transformado em coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de amar, não obstante o seu pecado. Nisto se nota que somos verdadeiramente uma «nova criação» (Gal 6,
15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço
para uma vida nova; fui «misericordiado» e, consequentemente, feito
instrumento da misericórdia.
17. Durante o Ano Santo, especialmente nas «sextas-feiras da misericórdia»,
pude verificar concretamente a grande quantidade de bem que existe no
mundo. Com frequência, não é conhecido porque se realiza diariamente de
forma discreta e silenciosa. Embora não façam notícia, existem muitos
sinais concretos de bondade e ternura para com os mais humildes e
indefesos, os que vivem mais sozinhos e abandonados. Há verdadeiros
protagonistas da caridade, que não deixam faltar a solidariedade aos
mais pobres e infelizes. Agradecemos ao Senhor por estes dons preciosos,
que convidam a descobrir a alegria de aproximar-se da humanidade
ferida. Com gratidão, penso nos inúmeros voluntários que diariamente
dedicam o seu tempo a manifestar a presença e proximidade de Deus com a
sua entrega. O seu serviço é uma genuína obra de misericórdia, que ajuda
muitas pessoas a aproximar-se da Igreja.
18. É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia
para dar vida a muitas obras novas, fruto da graça. A Igreja precisa de
narrar hoje aqueles «muitos outros sinais» que Jesus realizou e que «não
estão escritos» (Jo 20, 30), de modo que sejam expressão
eloquente da fecundidade do amor de Cristo e da comunidade que vive
d’Ele. Já se passaram mais de dois mil anos, e todavia as obras de
misericórdia continuam a tornar visível a bondade de Deus.
Ainda hoje populações inteiras padecem a fome e a sede, sendo grande a
preocupação suscitada pelas imagens de crianças que não têm nada para se
alimentar. Multidões de pessoas continuam a emigrar dum país para outro
à procura de alimento, trabalho, casa e paz. A doença, nas suas várias
formas, é um motivo permanente de aflição que requer ajuda, consolação e
apoio. Os estabelecimentos prisionais são lugares onde muitas vezes, à
pena restritiva da liberdade, se juntam transtornos por vezes graves
devido às condições desumanas de vida. O analfabetismo ainda é muito
difuso, impedindo aos meninos e meninas de se formarem, expondo-os a
novas formas de escravidão. A cultura do individualismo exacerbado,
sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e
responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a ser hoje
um desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior
obstáculo para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana.
Em suma, as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até
aos nossos dias a verificação da grande e positiva incidência da
misericórdia como valor social. Com efeito, esta impele a
arregaçar as mangas para restituir dignidade a milhões de pessoas que
são nossos irmãos e irmãs, chamados connosco a construir uma «cidade
fiável».[20]
19. Muitos sinais concretos de misericórdia foram realizados durante
este Ano Santo. Comunidades, famílias e indivíduos crentes redescobriram
a alegria da partilha e a beleza da solidariedade. Mas não basta. O
mundo continua a gerar novas formas de pobreza espiritual e material,
que comprometem a dignidade das pessoas. É por isso que a Igreja deve
permanecer vigilante e pronta para individuar novas obras de
misericórdia e implementá-las com generosidade e entusiasmo.
Assim, ponhamos todo o esforço em dar formas concretas à caridade e, ao
mesmo tempo, entender melhor as obras de misericórdia. Com efeito, esta
possui um efeito inclusivo pelo que tende a difundir-se como uma nódoa
de azeite e não conhece limites. E, neste sentido, somos chamados a dar
um novo rosto às obras de misericórdia que conhecemos desde sempre. De
facto a misericórdia extravasa; vai sempre mais além, é fecunda. É como o
fermento que faz levedar a massa (cf. Mt 13, 33), e como o grão de mostarda que se transforma numa árvore (cf. Lc 13, 19).
A título de exemplo, basta pensar na obra de misericórdia corporal vestir quem está nu (cf. Mt 25,
36.38.43.44). A mesma nos reconduz aos primórdios, ao jardim do Éden,
quando Adão e Eva descobriram que estavam nus e, ouvindo aproximar-Se o
Senhor, tiveram vergonha e esconderam-se (cf. Gn 3, 7-8). Sabemos que o Senhor castigou-os; no entanto, Ele «fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os» (Gn 3, 21). A vergonha é superada e a dignidade restituída.
Fixemos o olhar também em Jesus no Gólgota. Na cruz, o Filho de Deus
está nu; a sua túnica foi sorteada e levada pelos soldados (cf. Jo 19,
23-24); Ele não tem mais nada. Na cruz, manifesta-se ao máximo a
partilha de Jesus com as pessoas que perderam a dignidade, por terem
sido privadas do necessário. Assim como a Igreja é chamada a ser a
«túnica de Cristo»[21] para
revestir o seu Senhor, assim também ela se comprometeu a tornar-se
solidária com os nus da terra a fim de recuperarem a dignidade de que
foram despojados. Assim as palavras de Jesus – «estava nu e destes-me
que vestir» (Mt 25, 36) – obrigam-nos a não desviar o olhar das
novas formas de pobreza e marginalização que impedem às pessoas de
viverem com dignidade.
Não ter trabalho nem receber um salário justo, não poder ter uma casa
ou uma terra onde habitar, ser discriminados pela fé, a raça, a posição
social... estas e muitas outras são condições que atentam contra a
dignidade da pessoa; frente a elas, a ação misericordiosa dos cristãos
responde, antes de mais nada, com a vigilância e a solidariedade. Hoje
são tantas as situações em que podemos restituir dignidade às pessoas,
consentindo-lhes uma vida humana. Basta pensar em tantos meninos e
meninas que sofrem violências de vários tipos, que lhes roubam a alegria
da vida. Os seus rostos tristes e desorientados permanecem impressos na
minha mente; pedem a nossa ajuda para serem libertados da escravidão do
mundo contemporâneo. Estas crianças são os jovens de amanhã; como
estamos a prepará-las para viverem com dignidade e responsabilidade? Com
que esperança podem elas enfrentar o seu presente e o seu futuro?
O caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos
inertes mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os planos e
os projetos não fiquem letra morta. Que o Espírito Santo nos ajude a
estar sempre prontos a prestar de forma efetiva e desinteressada a nossa
contribuição, para que a justiça e uma vida digna não permaneçam meras
palavras de circunstância, mas sejam o compromisso concreto de quem
pretende testemunhar a presença do Reino de Deus.
20. Somos chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia,
com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual
ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o
sofrimento dos irmãos. As obras de misericórdia são «artesanais»:
nenhuma delas é cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil
modos e, embora seja único o Deus que as inspira e única a «matéria» de
que são feitas, ou seja, a própria misericórdia, cada uma adquire uma
forma distinta.
Com efeito, as obras de misericórdia, tocam toda a vida duma pessoa.
Por isso, temos possibilidade de criar uma verdadeira revolução cultural
precisamente a partir da simplicidade de gestos que podem alcançar o
corpo e o espírito, isto é, a vida das pessoas. É um compromisso que a
comunidade cristã pode assumir, na certeza de que a Palavra do Senhor
não cessa de a chamar para sair da indiferença e do individualismo em
que somos tentados a fechar-nos levando uma existência cómoda e sem
problemas. «Os pobres, sempre os tendes convosco» (Jo 12, 8):
disse Jesus aos seus discípulos. Não há desculpa que possa justificar a
incúria, quando sabemos que Ele Se identificou com cada um deles.
A cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil
à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na
solidariedade concreta para com os pobres. É um convite premente para
não se equivocar onde é determinante comprometer-se. A tentação de se
limitar a fazer a «teoria da misericórdia» é superada na medida em que
esta se faz vida diária de participação e partilha. Aliás, nunca devemos
esquecer as palavras com que o apóstolo Paulo – ao contar o encontro
depois da sua conversão com Pedro, Tiago e João – põe em realce um
aspeto essencial da sua missão e de toda a vida cristã: «Só nos disseram
que nos devíamos lembrar dos pobres – o que procurei fazer com o maior
empenho» (Gal 2, 10). Não podemos esquecer-nos dos pobres:
trata-se dum convite hoje mais atual do que nunca, que se impõe pela sua
evidência evangélica.
21. Que a experiência do Jubileu imprima em nós estas palavras do
apóstolo Pedro: outrora «não tínheis alcançado misericórdia e agora
alcançastes misericórdia» (1 Ped 2, 10). Não guardemos
ciosamente só para nós tudo o que recebemos; saibamos partilhá-lo com os
irmãos atribulados, para que sejam sustentados pela força da
misericórdia do Pai. As nossas comunidades abram-se para alcançar a
todas as pessoas que vivem no seu território, para que chegue a todas a
carícia de Deus através do testemunho dos crentes.
Este é o tempo da misericórdia. Cada dia da nossa caminhada é
marcado pela presença de Deus, que guia os nossos passos com a força da
graça que o Espírito infunde no coração para o plasmar e torná-lo capaz
de amar. É o tempo da misericórdia para todos e cada um, para que ninguém possa pensar que é alheio à proximidade de Deus e à força da sua ternura. É o tempo da misericórdia para
que quantos se sentem fracos e indefesos, afastados e sozinhos possam
individuar a presença de irmãos e irmãs que os sustentam nas suas
necessidades. É o tempo da misericórdia para que os pobres
sintam pousado sobre si o olhar respeitoso mas atento daqueles que,
vencida a indiferença, descobrem o essencial da vida. É o tempo da misericórdia para que cada pecador não se canse de pedir perdão e sentir a mão do Pai, que sempre acolhe e abraça.
À luz do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente», celebrado quando
já se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as catedrais e
santuários do mundo, intuí que, como mais um sinal concreto deste Ano
Santo extraordinário, se deve celebrar em toda a Igreja, na ocorrência
do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres.
Será a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos e
os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25,
31-46). Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a
refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência
de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à
porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21). Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.
22. Sobre nós permanecem pousados os olhos misericordiosos da Santa Mãe
de Deus. Ela é a primeira que abre a procissão e nos acompanha no
testemunho do amor. A Mãe da Misericórdia reúne a todos sob a proteção
do seu manto, como A quis frequentemente representar a arte. Confiemos
na sua ajuda materna e sigamos a indicação perene que nos dá de olhar
para Jesus, rosto radiante da misericórdia de Deus.
Dado em Roma, junto de São Pedro, em 20 de novembro – Solenidade de
Cristo Rei – do Ano do Senhor de 2016, quarto do meu pontificado.
FRANCISCO
[1] In Johannis33, 5.
[2] HERMAS, O Pastor, 42, 1-4.
[3] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27.
[4] Missal Romano, III Domingo da Quaresma.
[5] Ibid., Prefácio VII dos Domingos do Tempo Comum.
[6] Ibid., Oração Eucarística IV.
[7] Ibid., Oração Eucarística II.
[8] Ibid., Ritos da Comunhão.
[9] Ritual da Penitência, n. 46.
[10] Ritual da Unção dos Enfermos, n. 76.
[11] Cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium, 106.
[12] Idem, Const. dogm. Dei Verbum, 2.
[13] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 142.
[14] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 86-87.
[15] Cf. Carta pela qual se concede a indulgência por ocasião do Jubileu da Misericórdia, 1 de setembro de 2015.
[17] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia, 1.
[19] Missal Romano, Vigília Pascal, Oração depois da Primeira Leitura.
[20] Bento XVI, Carta enc. Lumen fidei, 50.
[21] Cipriano, A unidade da Igreja Católica, 7.
Comentários
Enviar um comentário