1º DE JANEIRO DE 2019
«A BOA POLÍTICA ESTÁ AO SERVIÇO DA PAZ»
1. «A paz esteja nesta casa!»
Jesus, ao enviar em missão os seus discípulos, disse-lhes: «Em
qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta
casa!” E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz;
se não, voltará para vós» (Lc 10, 5-6).
Oferecer a paz está no coração da missão dos discípulos de Cristo. E
esta oferta é feita a todos os homens e mulheres que, no meio dos
dramas e violências da história humana, esperam na paz.
A «casa», de que fala Jesus, é cada família, cada comunidade, cada
país, cada continente, na sua singularidade e história; antes de mais
nada, é cada pessoa, sem distinção nem discriminação alguma. E é também a
nossa «casa comum»: o planeta onde Deus nos colocou a morar e do qual
somos chamados a cuidar com solicitude.
Eis, pois, os meus votos no início do novo ano: «A paz esteja nesta casa!»
2. O desafio da boa política
A paz parece-se com a esperança de que fala o poeta Carlos Péguy;
é como uma flor frágil, que procura desabrochar por entre as pedras da
violência. Como sabemos, a busca do poder a todo o custo leva a abusos e
injustiças. A política é um meio fundamental para construir a cidadania
e as obras do homem, mas, quando aqueles que a exercem não a vivem como
serviço à coletividade humana, pode tornar-se instrumento de opressão,
marginalização e até destruição.
«Se alguém quiser ser o primeiro – diz Jesus – há de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc
9, 35). Como assinalava o Papa São Paulo VI, «tomar a sério a política,
nos seus diversos níveis – local, regional, nacional e mundial – é
afirmar o dever do homem, de todos os homens, de reconhecerem a
realidade concreta e o valor da liberdade de escolha que lhes é
proporcionada, para procurarem realizar juntos o bem da cidade, da nação
e da humanidade».
Com efeito, a função e a responsabilidade política constituem um
desafio permanente para todos aqueles que recebem o mandato de servir o
seu país, proteger as pessoas que habitam nele e trabalhar para criar as
condições dum futuro digno e justo. Se for implementada no respeito
fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política
pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade.
3. Caridade e virtudes humanas para uma política ao serviço dos direitos humanos e da paz
O Papa Bento XVI recordava que «todo o cristão é chamado a esta
caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de
incidência na pólis. (…) Quando o empenho pelo bem comum é
animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho
simplesmente secular e político. (…) A ação do homem sobre a terra,
quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a
edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana».
Trata-se de um programa no qual se podem reconhecer todos os políticos,
de qualquer afiliação cultural ou religiosa, que desejam trabalhar
juntos para o bem da família humana, praticando as virtudes humanas que
subjazem a uma boa ação política: a justiça, a equidade, o respeito
mútuo, a sinceridade, a honestidade, a fidelidade.
A propósito, vale a pena recordar as «bem-aventuranças do político»,
propostas por uma testemunha fiel do Evangelho, o Cardeal vietnamita
Francisco Xavier Nguyen Van Thuan, falecido em 2002:
Bem-aventurado o político que tem uma alta noção e uma profunda consciência do seu papel.
Bem-aventurado o político de cuja pessoa irradia a credibilidade.
Bem-aventurado o político que trabalha para o bem comum e não para os próprios interesses.
Bem-aventurado o político que permanece fielmente coerente.
Bem-aventurado o político que realiza a unidade.
Bem-aventurado o político que está comprometido na realização duma mudança radical.
Bem-aventurado o político que sabe escutar.
Cada renovação nos cargos eletivos, cada período eleitoral, cada
etapa da vida pública constitui uma oportunidade para voltar à fonte e
às referências que inspiram a justiça e o direito. Duma coisa temos a
certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita e promove os
direitos humanos fundamentais, que são igualmente deveres recíprocos,
para que se teça um vínculo de confiança e gratidão entre as gerações do
presente e as futuras.
4. Os vícios da política
A par das virtudes, não faltam infelizmente os vícios, mesmo na
política, devidos quer à inépcia pessoal quer às distorções no meio
ambiente e nas instituições. Para todos, está claro que os vícios da
vida política tiram credibilidade aos sistemas dentro dos quais ela se
realiza, bem como à autoridade, às decisões e à ação das pessoas que se
lhe dedicam. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida democrática
autêntica, são a vergonha da vida pública e colocam em perigo a paz
social: a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida
dos bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –, a negação do
direito, a falta de respeito pelas regras comunitárias, o enriquecimento
ilegal, a justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário
da «razão de Estado», a tendência a perpetuar-se no poder, a xenofobia e
o racismo, a recusa a cuidar da Terra, a exploração ilimitada dos
recursos naturais em razão do lucro imediato, o desprezo daqueles que
foram forçados ao exílio.
5. A boa política promove a participação dos jovens e a confiança no outro
Quando o exercício do poder político visa apenas salvaguardar os
interesses de certos indivíduos privilegiados, o futuro fica
comprometido e os jovens podem ser tentados pela desconfiança, por se
verem condenados a permanecer à margem da sociedade, sem possibilidades
de participar num projeto para o futuro. Pelo contrário, quando a
política se traduz, concretamente, no encorajamento dos talentos juvenis
e das vocações que requerem a sua realização, a paz propaga-se nas
consciências e nos rostos. Torna-se uma confiança dinâmica, que
significa «fio-me de ti e creio contigo» na possibilidade de
trabalharmos juntos pelo bem comum. Por isso, a política é a favor da
paz, se se expressa no reconhecimento dos carismas e capacidades de cada
pessoa. «Que há de mais belo que uma mão estendida? Esta foi querida
por Deus para dar e receber. Deus não a quis para matar (cf. Gn
4, 1-16) ou fazer sofrer, mas para cuidar e ajudar a viver. Juntamente
com o coração e a inteligência, pode, também a mão, tornar-se um
instrumento de diálogo».
Cada um pode contribuir com a própria pedra para a construção da
casa comum. A vida política autêntica, que se funda no direito e num
diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada
mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode
irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e
espirituais. Uma tal confiança nunca é fácil de viver, porque as
relações humanas são complexas. Nestes tempos, em particular, vivemos
num clima de desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do
forasteiro, na ansiedade pela perda das próprias vantagens, e
manifesta-se também, infelizmente, a nível político mediante atitudes de
fechamento ou nacionalismos que colocam em questão aquela fraternidade
de que o nosso mundo globalizado tanto precisa. Hoje, mais do que nunca,
as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz» que possam ser
autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem e a
felicidade da família humana.
6. Não à guerra nem à estratégia do medo
Cem anos depois do fim da I Guerra Mundial, ao recordarmos os jovens
mortos durante aqueles combates e as populações civis dilaceradas,
experimentamos – hoje, ainda mais que ontem – a terrível lição das
guerras fratricidas, isto é, que a paz não pode jamais reduzir-se ao
mero equilíbrio das forças e do medo. Manter o outro sob ameaça
significa reduzi-lo ao estado de objeto e negar a sua dignidade. Por
esta razão, reiteramos que a escalada em termos de intimidação, bem como
a proliferação descontrolada das armas são contrárias à moral e à busca
duma verdadeira concórdia. O terror exercido sobre as pessoas mais
vulneráveis contribui para o exílio de populações inteiras à procura
duma terra de paz. Não são sustentáveis os discursos políticos que
tendem a acusar os migrantes de todos os males e a privar os pobres da
esperança. Ao contrário, deve-se reafirmar que a paz se baseia no
respeito por toda a pessoa, independentemente da sua história, no
respeito pelo direito e o bem comum, pela criação que nos foi confiada e
pela riqueza moral transmitida pelas gerações passadas.
O nosso pensamento detém-se, ainda e de modo particular, nas
crianças que vivem nas zonas atuais de conflito e em todos aqueles que
se esforçam por que a sua vida e os seus direitos sejam protegidos. No
mundo, uma em cada seis crianças sofre com a violência da guerra ou
pelas suas consequências, quando não é requisitada para se tornar, ela
própria, soldado ou refém dos grupos armados. O testemunho daqueles que
trabalham para defender a dignidade e o respeito das crianças é
extremamente precioso para o futuro da humanidade.
7. Um grande projeto de paz
Celebra-se, nestes dias, o septuagésimo aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, adotada após a II Guerra Mundial. A este
respeito, recordemos a observação do Papa São João XXIII: «Quando numa
pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá
forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de
reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o
dever de reconhecer e respeitar tais direitos».
Com efeito, a paz é fruto dum grande projeto político, que se baseia
na responsabilidade mútua e na interdependência dos seres humanos. Mas é
também um desafio que requer ser abraçado dia após dia. A paz é uma
conversão do coração e da alma, sendo fácil reconhecer três dimensões
indissociáveis desta paz interior e comunitária:
- a paz consigo mesmo, rejeitando a intransigência, a ira e a
impaciência e – como aconselhava São Francisco de Sales – cultivando «um
pouco de doçura para consigo mesmo», a fim de oferecer «um pouco de
doçura aos outros»;
- a paz com o outro: o familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre, o
atribulado..., tendo a ousadia do encontro, para ouvir a mensagem que
traz consigo;
- a paz com a criação, descobrindo a grandeza do dom de Deus e a
parte de responsabilidade que compete a cada um de nós, como habitante
deste mundo, cidadão e ator do futuro.
A política da paz, que conhece bem as fragilidades humanas e delas se ocupa, pode sempre inspirar-se ao espírito do Magnificat que Maria, Mãe de Cristo Salvador e Rainha da Paz, canta em nome de todos os homens: A «misericórdia [do Todo-Poderoso]
estende-se de geração em geração sobre aqueles que O temem. Manifestou o
poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de
seus tronos e exaltou os humildes (...), lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para
sempre» (Lc 1, 50-55).
Vaticano, 8 de dezembro de 2018.
Franciscus
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